Tuesday, August 28, 2007

28.08.2007 (Terça-f) - Ida do Funchal para Ponta Delgada

Hoje abalaria para Ponta Delgada às 15.00 h numa viagem que duraria menos de 1 hora. Antes de abalar ainda queria visitar o Mercado do Funchal, chamado Mercado dos Lavradores. Apesar do seu nome existia imenso peixe: atum, lulas, peixe espada, polvo, lapas e sardinhas... Era um edifício do Estado Novo e estava localizado no centro, adjacente à Ribeira de João Gomes e à, outrora, Rua Nova de Sta. Maria hoje Rua Latino Coelho.
Gosto de andar por mercados pela sua dinâmica, energia, cheiros, produtos e pessoas... Mercados falam muito acerca de cidades, do seu lado económico, demográfico e produtivo. Muito dos produtos produzidos no Funchal são vendidos neste mercado e parece que toda a gente se reúne aqui para abastecimento das suas casas. Um dos vendedores (que também produz) falava do quando produtos vindos de fora estão agora a invadir o mercado local pelos seus preços mais baixos. Ironicamente, quase localizado em frente ao Mercado, situa-se o Novo centro comercial onde se instalou um Pingo Doce.
No mercado as pessoas aglomeram-se para ver a venda do peixe, velhos jogam às cartas nas escadas, os vizinhos falam sobre os negócios que parecem mais escassos e os turistas clicam aqui e ali para cenas que lhes parecem exóticas. O mercado parece o lugar de convivência matinal onde toda a gente se encontra, uns compram, uns saciam a curiosidade e a necessidade de simplesmente ver gente. Os frutos e os legumes penduram-se nos beirais das bancas e expõem-se em cestas de vime; enquanto isso os cães pegam pedaços de ossos oferecidos por quem passa. Turistas passam e tiram fotografias de frutos exóticos expostos e os vendedores oferecem pedaços para saciar a curiosidade. Uma espécie de Bazar, o mercado é uma estrutura de convivência por natureza, e um dos bastiões da vida económica e cultural da cidade.
Queria voltar ao bairros que tinha visto do teleférico. Subi a Rua Visconde de Anadia, paralela à Ribeira, e reparei numa tapeçaria bordada com uma paisagem do Funchal do séc. XVI. Neste a dualidade entre o rural e urbano estava representado.
Nas encostas as residências organizavam-se por socalcos e assomam-se para o vale olhando sobre os seus quintais feitos de bananeiras, estrelícias, vinhas, legumes e frutas. Entre aquelas os quintais oferecia a exuberância das cores, cheiros e texturas e passagens alinhados por vasos de flores e ervas aromáticas ofereciam acesso aos residentes. Nestas mulheres regavam as suas plantas. Os acessos aconteciam por íngremes escadas e por cada lanço de escadas cada residência acomodava 2 pisos incluindo o quintal, posicionado ou para a frente da rua ou para seu acesso. Tal solução não só oferecia privacidade como também permitia articular os acessos daquela acidentada topografia. No final do 1º lanço outra residência começava. Era uma solução criativa que obrigava a inexistência de carros. Este bairro parecia uma mat-estrutura na qual era difícil identificar os limites do que era casa ou jardim. Parecia um ecossistema que estava encrostado com o terreno oferecendo simultaneamente as vistas para o vale e a porosidade para a vegetação se exibir. As 3 filas de casas venciam aproximadamente 20 metros de altura. Mais uma vez lembrei-me das tipologias de Olinda e Santos que observei no Brasil.
Era tempo de abalar para o aeroporto. O táxi seguia gentilmente pelas curvas da encosta e de lá o mar era imensamente azul. Ao longe, uma parede escura de basalto rodeada por densa neblina lembrava-me da existência da Ilha das Desertas.
Não consigo imaginar como se aterrava no aeroporto antes da extensão da pista; “os aviões começavam a travar no ar antes de aterrar” dizia o taxista.
O dia estava lindo, o céu cristalino e uma brisa suave entrava pela janela do carro.
Quando o avião levantou da pista o mar estava vertiginosamente debaixo dos meus pés.
No céu as nuvens parecem arranha-céus que se estendem perpendicularmente ao mar. Parecem múltiplas Manhattans brancas que se posicionam esparsamente no céu em marcha, como nós, para Ponta Delgada. Do ar consegui ver a costa de São Miguel e, contrariamente à Madeira, a sua paisagem não era tão acidentada.
Outeiros formavam-se aqui e ali em inclinações ligeiras até ao mar e em padrões de distintos verdes. Do céu consegui ver as diferentes vilas e cidades ao longo da costa: Povoação, Ribeira Quente, Ponta Garça, Vila Franca do Campo, Lagoa e, finalmente Ponta Delgada. Curiosamente tinha notado que em todas aquelas vilas e cidades havia uma estrutura sistemática no tecido urbano de caminhos perpendiculares à costa. Tal como o movimento da água a cidade também escorria em direcção ao mar maximizando a exposição Este-Oeste. O que estava a estruturar esse sistema ? Eram linhas de água, topografia, limites fundiários ?
A residencial, localizada numa dessas linha paralelas ao mar (Rua Dr. Bruno Tavares Carreiro), era imensamente confortável lembrando-me que estas eram a duas últimas noites antes da partida para NY. O quarto cheirava a flores sem a presença delas e da janela o branco das paredes contrastava com o escuro das telhas. As nuvens pareciam carregadas e ao mesmo tempo indecisas entre o cinza escuro e o branco marfim. Tal com alguém dizia “nos Açores temos as 4 estações num só dia”.


Inversamente à Madeira, os Açores nunca foram prósperos na industria da açúcar. Em vez de açúcar a cultura predominante foi o pastel, trigo e mais tarde laranja, vinha, chá e tabaco. Porém, foram as boas condições naturais do seu porto e a sua posição estratégica em relação às rotas nacionais (Oriente e Brasil) e estrangeiras que veio determinar o carácter mercantil de Ponta Delgada. Como prova disso foi a construção imediata do edifício da Alfândega a par com a construção da Matriz. Em vez de uma sociedade agrária tínhamos uma economia de mercado, híbrida entre o negócio com a propriedade fundiária. Como Gaspar Frutuoso nos relata haviam muitos “homens nobres e poderosos”, sobretudo mercadores que buscavam nobilização através da árdua tarefa de aquisição fundiária.
Fui ao terraço da residencial para ver a paisagem circundante e notei na existência de variados morros a norte da cidade. Dali uma encosta inclinada adoçava-se suavemente em direcção a mim. Como uma pauta musical as linha marcadas no terreno formavam uma armadura ao longo da qual as ruas se desenvolviam até ao mar.

Tinha lido que o desenvolvimento de Ponta Delgada ocorreu ao longo do mar, paralelo à costa, ligando o inicial núcleo do povoamento com as outras funções da cidade. Porém não vejo este factor como identitário da cidade já que em muitas cidades o mesmo aconteceu. Penso que é precisamente na direcção oposta (perpendicular ao mar) que reside a excepcionalidade de Ponta Delgada. É nesta convergência das ruas perpendiculares ao mar que a Matriz e a Praça se encontram, o centro cívico e espiritual da cidade; que também era infra-estrutural !
A relação com a Natureza é muito distinta da observada no Funchal. A Natureza em Ponta Delgada é mais meditativa mas simultaneamente mais minimal e intensa em momentos particulares. A topografia suave e a orografia interagem subtilmente definindo a matriz geradora do carácter de Ponta Delgada iniciado no final do século XVI. Teriam os núcleos urbanos, já em desenvolvimento no Brasil, alguma influência no entendimento da orografia como elemento estratégico na estruturação urbana, tal como se assistiu em Santos, por exemplo ? Diferentemente ao que acontecia no Funchal, Ponta Delgada não era muito rica em água pois os terrenos eram porosos e fácil absorção. E, por isso as fontes e cisternas existentes mereciam o nome para ruas até ao século XIX com o aparecimento da água canalizada.... Amanhã seria o dia para decifrar esta suposição.