Wednesday, August 15, 2007

15.08.2007 (Quarta-f) – De Santos para o Rio (com escala em S. Paulo)

Hoje iríamos partir para o Rio com escala em São Paulo às 20.30. Teríamos de apanhar o autocarro directo da Trans-Litoral das 17.30 até ao aeroporto de Congonhas. Até lá queria falar com o Historiador Dionísio da Fundação Arquivo e Memória de Santos no Outeiro de Santa Catarina. Queria trocar com ele alguns dados acerca da história da cidade e da sua relação embrionária com água e com canais. Tinha aprendido que no Morro de Nova Cintra havia um funicular que não usava nem tracção animal nem vapor mas sim água. No topo do monte Nova Cintra havia um lago, fruto de fontes em redor, que no séc. XVI já movia um engenho de açúcar. Através do peso de 2 toneladas de água, colocada no tanque de um dos carros, o funicular subia e descia com os passageiros. O seu serviço acabou por encerrar na consequência de um acidente provocado pela ruptura dos cabos de tracção. O ponto que importa aqui notar é a presença omnipresente e racional da água com todas a suas propriedades: para transporte, para bebida, para organização espacial, identidade, para razões cívicas e para mecanismos de tracção !
Antes de irmos para o centro acabamos por caminhar mais uma vez pela Av. Floriano Peixoto, a primeira rua perpendicular ao Canal 1 para irmos a uma livraria de livros usados, o Sebo. Estava a procurar “Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial” de Nestor Reis. Naquele livro estavam compilados muito dos mapas que eu necessitaria para me ajudar a interpretar os elementos de fundação e a sua integração, alteração, hibridação ou, simplesmente, desaparecimento nas cidades que tinha visitado até então. Era um livro que tinha sido lançado na altura da celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Tínhamo-lo finalmente comprado em São Paulo, via on-line na “estante virtual”, para entrega no dia seguinte no Rio, no hotel onde ficaríamos. Uma decisão clara e racional !
Fomos para o centro de Santos de autocarro. No mapa parece um percurso que se pode fazer a pé. Mas de autocarro levamos cerca de 30 min pela Av. Washington Luís, adjacente ao Canal 3. A coisa boa acerca das novas avenidas é que não mudam de nome. É frequente encontrar no centro histórico 2 a 3 placas toponímicas com os nomes anteriores ao actual. Estes geralmente substituíram os nomes da era colonial por personagens que se destacaram ou por datas comemorativas do período da República. Porém neste processo de transferência muitos nomes ligados à histórica física (e não humana) perderam-se, tais como Rua Direita, Rua da Fonte, Rua do Mercado, Rua do Outeiro, Rua da Sé, Rua da Praia, Rua das Tripas.. Havia uma imediaticidade relacionada com uma história dos sítios, funcional e geograficamente que se perdeu. Agora somente os livros e os seus habitantes, agora, podem falar dessa história...
O Canal 3 é um dos mais interessantes. A sua vegetação é variada em compacticidade, espessura e cor. Perto da Av. Presidente Wilson as árvores começam espessas e com uma copa encerrada. Os ramos pendem para a água e oferecem uma sombra densa contra o sol escaldante aos habitantes que caminham no passeio do canal. Esta compacticidade esvai-se para Norte, em direcção ao centro, revelando o Monte Serrat ao mesmo tempo que nos lembra que estamos a chegar ao centro. Na chegada do Outeiro de Santa Catarina, para surpresa nossa, o pequeno monte tinha desaparecido! Durante o tempo este tinha sido desbastado para caber na grelha de expansão da cidade do início do século XX, do início do sistema de canais e Avenidas. Como referido os planos de Saturnino Brito estabeleceram uma infra-estrutura de saneamento, gestão de água e lazer ao mesmo tempo que definiram um sistema de expansão para a cidade. No início do séc. XX Santos assistia ao crescimento da produção do café o que lhe conferia um novo estatuto económico e social. A cidade tinha de crescer para acomodar esta nova economia. O racional, estratégico, infra-estrutural e cívico juntaram-se neste plano ! Hoje vejo-os como uma oportunidade única de Santos em integrá-los numa escala de sistemas ecológicos em vez de tentar apagá-los da sua história. Ao longo daquele caminho, até ao centro da cidade, diversas garças brancas apanhavam pequenos insectos e pequenos peixes do canal. Existe vida nos canais e tem-se de cuidar destes. Hoje muitos desses Ribeiros encontram-se subterrados e esquecidos, enquanto outros artificiais lembram da presença omnipresente da água na cidade.

O arquivo do Outeiro estava encerrado para o almoço. Teríamos de voltar dali a 1 hora, altura em que o Historiador Dionísio voltaria. Isto dar-nos-ia tempo para almoçar e andar pelas ruas do centro onde outrora eram as ribeiras de água fresca que saciavam a sede e providenciavam transporte para a população inicial de Santos. Essas linhas de água era aproximadamente as ruas 15 de Novembro, S. Bento e D. Pedro II. Do outro lado da Rua Xavier da Silveira, através de um passadiço sobre esta avistávamos o Porto. Este abria-se na extensão das terras de mangue do outro lado do Rio e aos pés das montanhas do planalto de São Paulo. Haviam ferries e cargueiros de grande porte a saírem do porto constantemente. Passageiros iam para as cidades adjacentes de Santos e cargas para todo o mundo (e vindas de todo o mundo também) amontoavam-se nas proas dos navios. Santos é o porto de São Paulo mas a cidade parece não relacionar-se com o Rio de nenhuma forma excepto de mera utilidade infra-estrutural. A prosperidade do seu porto vem grandemente pela capacidade portuária garantida pela sua localização no Rio. Tinha aprendido que os portos de rio não acumulam sedimentação pela força da foz possibilitando a profundidade necessária nos seus leitos para o movimento dos navios de elevada carga.
Adjacente à Alfândega, na Rua 15 de Novembro, antiga Rua Direita, estava a praça da República por onde antigamente passava o Ribeiro do Carmo ou Itororó (nome da fonte). Como era de esperar não havia presença deste mas existia ainda o “conjunto do Carmo”. Acabamos por almoçar ali por perto até ser tempo de regressar ao Outeiro. Quando lá chegámos Cláudio Lorena recebeu-nos amavelmente. Actualmente, trabalhando na Fundação, falou-nos dos seus tempos em que era professor de História enquanto nos descrevia as fotos antigas de Santos que se exibiam nas paredes. Numa delas estava a casa do Trem Bélico onde Cláudio apontava para as escadas, chamadas “portuguesas.” Esta casa tinha um importante papel na história militar da cidade já que era o depósito de material bélico em caso de invasão. Para dificultar o seu acesso cada degrau era diferente entre os demais para evitar fácil acesso aos invasores e facilitar contra-agressão. “A sua irregularidade provocava desorientação”, dizia. Muito interessante este mecanismo de defesa !
Na parede estava também a gravura de Benedito Calixto de Santos no início do séc. XVIII onde, na Biblioteca Humanitária, tinha confirmado as minhas suspeitas ao identificar os primordiais ribeiros de Santos. Nessa altura a evolução de Santos ainda não tinha acontecido e os ribeiros ainda mantinham as suas funções na vila de Santos: providenciar água potável, transporte e espaços de convívio.
Quando o Historiador Dionísio chegou à fundação a nossa conversa estava animada e rica em pormenores que Cláudio partilhava connosco acerca das fotos antigas de Santos. Dionísio juntou-se à nossa conversa. Havia algo de extremamente amável neste homem de postura humilde e orgulhosa. Dizia que tinha sangue índio mas as suas feições lembravam imensamente Joseph Beuys... Falei-lhe da viagem que temos estado a fazer pela costa do Brasil e do meu interesse em explorar o urbanismo português do séc. XVI porque acreditava na existência de uma particular relação entre a paisagem construída e Natureza onde se insere. Porém, este relação tinha-se revelado muito mais complexa do que imaginado inicialmente. Cada cidade tinha a sua identidade e algo de muito distinto. O que me tinha chamado a atenção em Santos era precisamente a sua relação com canais/linhas de água e a potencial matriz genética dos tempos de fundação na solução encontrada para os presentes canais de Santos. Assim como Santos se desenvolveu na época de fundação ao longo dos ribeiros existentes assim se organizou a sua expansão no séc. XX. Perguntei-lhe se existia alguma validade nesse pensamento. Respondeu que nunca tinha pensado nisso mas decerto que agora via essa relação ! Fiquei contente com o seu comentário. Santos São Vicente tinha sido fundado primeiro do que Santos, no outro lado do monte. Porém a presença de fontes e inúmeros ribeiros nos terrenos de Santos possibilitou o seu crescimento e consolidação no séc. XVI. Outro factor tinha sido importante na consolidação de Santos como cidade. Ao longo do séc. XVI e XVII, como Dionísio nos dizia, uma ampla população de madeirenses tinha vindo habitar a Vila de Santos para trabalhar nos engenhos de açúcar circundantes. Habituados a condições topográficas mais extremas da ilha da Madeira, eles materializaram a técnica e a mão-de-obra que possibilitou o desenvolvimento de áreas residenciais na topografia acidentada. Disse-lhe que de facto tinha reparado nas construção bastante intricada nos montes em redor a Santos. Desde Olinda tenho notado que muito do artesanato é semelhante ao da Madeira, sobretudo nas cestas de vime e bordados. Ao ler o livro de Stuart Schwartz, que Alexandre Dias (o historiador de Olinda) me aconselhou “Sugar plantations in the formation of Brazilian Society” me apercebi do quanto a Madeira foi um enorme produtor de açúcar no séc. XVI. Poder-se-á dizer que a Madeira foi o pré-modelo da produção de açúcar de todo o império económico e comercial implantado no Brasil do séc. XVI. Nesta altura a técnica de cultivo e produção já estava dominada. Os madeirenses tiveram um papel crucial na disseminação do conhecimento na construção de engenhos de açúcar. Eram pagos a preços muito altos para se alojarem nas terras novas do Brasil. Daí o seu artesanato, modo de articulação com a topografia ainda se manter na paisagem construída !
Dionísio despediu-se de nós pois tinha alguém à sua espera para uma entrevista. Eram da televisão de Santos ! E também nos entrevistaram pois ficaram curiosos do que estaria esta pessoa de Portugal a investigar no Outeiro...

Já era tempo de voltar pois a hora de apanhar o autocarro de regresso a São Paulo estava a aproximar-se depressa. Tinha perdido a noção das horas naquele imensamente rico tempo de conversa com Dionísio. Podia ficar ali o resto do dia...
A paragem de autocarros ficava no cruzamento da Av. General Glicério com o canal 2, numa estação de gasolina... Assim se nota no quanto andar de transportes públicos é coisa do dia-a-dia. Simplesmente no apeadeiro da bomba de gasolina as pessoas se aglomeram para ir para outras cidades.
Ir de Santos para São Paulo demoraria mais tempo do que o caminho inverso. Tínhamos de subir o Parque Estadual da Serra do Mar para atingir o Planalto onde São Paulo se localiza. A subida pela montanha é abrupta, o que provoca compressão nos ouvidos. Era como subir a escarpa de Salvador 20 vezes maior o seu tamanho.
Tínhamos chegado ao aeroporto de Congonhas; um lugar já bastante familiar para nós já que tínhamos feito escala aqui por de 3 vezes... Hoje chegaríamos tarde ao Rio mas felizmente já tínhamos reservado hotel. Desta fez ficaríamos no centro, na Glória. A contabilizar com os atrasos nos voos, que têm sido recorrentes, contaríamos chegar ao Rio por volta das 22.30.
Em muitos canais da TV é relatada a crise dos transportes aéreos brasileiro: a falta de inspecção dos aviões, a falta de segurança nos voos... A infra-estrutura do Brasil parece necessitar de uma urgente reforma. Sem uma rede de infra-estruturas adequada é muito difícil combater as assimetrias de um país, de possibilitar desenvolvimento e activar economias locais e links internacionais. Brasil definitivamente necessita de um plano que ligue de Norte a Sul o País. A referência mais próxima deste modelo seria o corredor de transporte da costa Este dos USA que liga Baltimore, Philadelfia, Nova Yorque e Boston. Pensado fisicamente como um link de transportes (auto-estradas e comboios) este é um corredor estratégico para desenvolvimento económico entre estas cidades. Tendo como Curitiba um exemplo de excepcional qualidade na rede de transportes, Brasil tem capacidade, necessidade e expertise para implantar uma estratégia abrangente e democratizadora nesta área...

O voo não foi muito atribulado mas chegámos à hora que estávamos a prever. Tomámos o autocarro até ao hotel. Isto apenas nos custaria 5R em vez de 50R por táxi. Era tempo de poupar. Rio era a nossa última cidade no Brasil. Aqui ficaríamos 4 dias, suficiente (talvez) para recolhermos alguma informação extra nas inúmeras bibliotecas e institutos da cidade. Também Rio era a cidade maior e, talvez por isso, mais difícil de entender na sua complexidade. Para isso precisaríamos de mais dias aqui... Antes de adormecermos era tempo para um chopinho e uma dose de camarões fritos à moda carioca ! A noite estava linda e imensa gente ainda se reunia nas esplanadas dos cafés para conversar...