Wednesday, August 8, 2007

08.08.2007 (Quarta-f) – Em Salvador: Os elevadores

Acordámos com o barulho da Praça. No tecto do quarto víamos reflectido a actividade da rua. Era o efeito de camela obscura que revelava o que se passava na Praça. Como é fascinante este efeito, pois tudo é tão preciso e simultaneamente tão fluorescente ! E é a articulação precisa entre a luz do exterior-interiror, reflecção e abertura entre portadas que produz este efeito. Penso que é a segunda vez que assisto a este fenómeno...
Tínhamos encontrado um hotel razoavelmente barato e muito acolhedor. O seu proprietário confirmava a minha suspeição. Era português. As suas feições tinham algo de familiar e estavam ausentes de qualquer mistura que até então tinha identificado em Salvador.

Do quarto do hotel podíamos avistar a Baía e o imenso tráfego de navios. Também avistávamos o bloco imediatamente adjacente ao nosso. Eram favelas ! Até então não nos tínhamos apercebido que o centro antigo classificado pela UNESCO, e sob um longo processo de restauração, estava rodeado por favelas. Assim era o centro antes de ser recuperado: sem saneamento, sem infra-estruturas e muito degradado. Hoje o centro está habitado praticamente por serviços de apoio ao turismo, associações, escolas, restauração, espaços culturais, comércio de artigos artesanais. Os residentes foram realojados noutros sítios em Salvador. E à noite quando o comércio está fechado pouca gente se vê na rua... A questão que coloco é como se mantêm estes núcleos sem que isso represente um encargo enorme para a municipalidade ? Não parece ser a melhor decisão económica e nem, sobretudo, social quando se decide excluir grande parte do uso residencial dos centros urbanos !
Tinha de procurar um mapa pois ainda não conseguia “espacializar” a cidade. Havia uma Bahiatursa por perto. Aí poderia encontrar mapas turísticos de graça. Salvador era uma cidade cara...
Enquanto na biblioteca do IPAC reparei que um guia se encontrava com um grupo de turistas no lobby. Estava interessada em filmar algum do contexto da cidade mas, apesar de imensa polícia em todas as ruas e esquinas, não me sentia muito segura em usar a câmara de filmar. Conheci o “Bidica” um guia pertencente a uma cooperativa de guias parecida à de Olinda em que as receitas obtidas pelo trabalho são partilhados por um grupo de apoio à integração de crianças carenciadas. Nesse grupo ensinam crianças a história da cidade para que, mais tarde, também possam ser guias. Com ele sentir-me-ia mais confortável ! Ás 2 horas da tarde combinámos encontrarmo-nos no mesmo lobby. Ele levou-nos pelas ruas do centro Salvador enquanto nos falava no quanto o processo de renovação custou à população da cidade: “muita da população, muita dela envelhecida, teve se realojar noutras áreas da cidade”. Salvador foi classificado em 1985, depois de Ouro Preto, Olinda e São Miguel das Missões. Porém o contraste entre o classificado e o não classificado é enorme. Segundo Bidica o mayor de então ? estava muito empenhado na mudança de Salvador sem efectivamente ter em atenção a dimensão social desta transformação. Só ficamos pela terra alta e o nosso percurso foi o Terreiro dos Jesuítas, a Praça da Sé, o Pelourinho, o Quarteirão Cultural e (em maneira de excepção) a área em redor ao centro pois como Bidica falou “assim era Salvador”, sem infra-estruturas de saneamento e extremamente degradado.
Do Quarteirão cultural podíamos vislumbrar a cidade do outro lado do vale (Rua Dr. Seabra), outrora o Ribeiro das Tripas Era um amontoado de construções que se tinham tornado bairros em redor às Igrejas e conventos. Salvador é conhecido por ter “uma igreja por cada dia do ano” e essa descrição é surpreendentemente verdadeira, pois revelam-se a cada esquina e rua, ladeira ou largo.
Imediatamente nas “costas” do classificado e turístico centro histórico (e como me tinha apercebido da janela do nosso hotel) Bidica mostrou-nos “como Salvador era antigamente”. Parecia que tinha sido bombardeada com a excepção que, em vez de feridos, tínhamos crianças e jovens com cachimbos em punho a puxar no crack... Como Bidica era conhecido deixaram-nos passar sem grande interacção. Uns tentavam cobrir com as palmas da mão outros apenas, lentamente, rodar os torsos contra a parede.
Reparámos que na Praça de Sé não existia nenhuma Sé. Bidica disse-me que tinha sido demolida no início do séc. XIX para dar lugar às linhas de Bonde. Definitivamente para destruir a Sé, numa cidade intensamente religiosa como Salvador, é necessário que as infra-estruturas tenham também um impacto económico enorme na sua história e um antecedente marcante desde a sua fundação. Acabámos a visita no Elevador Lacerda, junto à Praça Municipal, fronteira à Municipalidade. Dali podíamos ver o Forte São Marcelo, uma perfeita forma circular na baía com um pátio ao centro - o “empadão” como o rei D. Pedro II lhe chamou. Não me lembro de ter visto ainda um forte de forma circular e despegado de terra. Este, com mais outro fortes em redor da cidade proporcionavam o fogo cruzado necessário à protecção da cidade, a capital do açúcar no séc. XVII.
Durante a nossa breve caminhada pelo centro histórico tinha reparado na presença de elevadores que ligavam a cidade alta com a cidade baixa. Isso fez-me lembrar da localização geográfica de Salvador: numa falha geográfica de aproximadamente 100 metros. É de relato que a fundação da cidade de Salvador nesta condição topográfica tenha ajudado na sua protecção mas também tenha provocado um extremo custo: “... 12.000 escravos, ora empregados nos transportes, se aplicariam a cultivar as roças... é maior o gasto que se faz nos fretes dos materiais na construção das casas, que o seu custo”. Este facto despertou a minha curiosidade para a história das Infra-estruturas de transporte em Salvador já que a sua extrema topografia obrigava a “criativas” soluções para o desenvolvimento da cidade. Dirigimo-nos para o Instituto do Património, Arte e Cultura (IPAC) para procurar um pouco acerca da história da cidade. Aqui, no livro chamado “A Evolução física de Salvador” tive oportunidade de descobrir alguma iconografia do início do séc. XVI até ao séc. XVII onde já se identificavam meios mecânicos de ligação entre a cota alta e baixa, nomeadamente na Praça Municipal, no Colégio dos Jesuítas, no Convento de S. Bento e no Convento do Carmo. Os primeiros destes mecanismos foram o guindaste da Praça e guindaste dos Padres localizados na actual Praça do Município e no Colégio dos Jesuítas respectivamente. Hoje, reformulados, constituem o Elevador Lacerda e o Plano Inclinado Gonçalves. Outros planos inclinados, reminiscentes do séc. XVI-XVII ainda existem, tais como o Plano Inclinado do Pilar (outrora plano inclinado do Carmo), o Plano Inclinado da Liberdade (próximo do Guindaste de S. Bento) e o Elevador do Taboão.
Salvador desenvolveu-se assim em 2 níveis, entre a falha topográfica, cada um deles correspondente a distintos grupos de actividades. Na cidade alta desenvolveu-se o centro religioso, residencial e administrativo, enquanto que na cidade baixa desenvolveu-se a indústria e o comércio. Argumento que somente o conhecimento e o desenvolvimento de meios de transporte, que possibilitassem a relação entre estes 2 níveis, permitiu a desenvolvimento da cidade.

Esse dia tinha sido comprido e já o sol se punha. O arquivo estava a fechar e decidimos visitar alguma das livrarias de segunda mão na Rua Ruy Barbosa, nas costas da importante Rua do Chile, para tentarmos comprar o livro sobre a evolução de Salvador. Encontrámos uma livraria sebo (livraria Brandão). Era impressionante a sua colecção. Estava repleta de estantes carregadas por livros antigos acerca dos mais variados assuntos, medicina, biologia, geografia, história, esoterismo, sexo, arquitectura, política, economia... Encontrámos o livro que queria e outros livros acerca de Salvador, sobretudo com fotografias antigas. Nestes podemos ver a Sé, outrora destruída pela linha de Bonde e testemunhar a intensa relação da cidade com meios de transporte. Extensas colecções de fotografias eram dedicadas a esse tema e até uma fotografia do Zepellin a sobrevoar Salvador estava em exibição ! Portanto, Salvador foi não só centro da produção de açúcar mas também o Hub dos transportes no Brasil do séc. XVI e XVII.
Da janela do quarto do hotel víamos ao longe as pequenas luzes que se moviam pela Baía. Eram os navios a partirem para as rotas internacionais. Talvez em alguns meses pelo menos um deles poderia atracar em Lisboa.