Sunday, August 5, 2007

05.08.2007 (domingo) – Em Olinda

Quando acordámos o dia estava claro. Tinha chovido toda a noite e o sol brilhava por entre as persianas de madeira. Ficámos numa pousada em frente à Igreja de S. Pedro, na Praça João Alfredo. Requintadamente restaurada, tal como grande parte das residências em Olinda Velha, esta residência foi convertida em pousada desde a sua classificação pela UNESCO como património mundial em 1982. Parece que este processo de reconversão tem sido minucioso e respeitador ao carácter do sítio: cores têm de ser respeitadas, materiais, anúncios nas fachadas controlados, espaços públicos preservados, monumentos restaurados, pavimentos nas ruas e passeios inalterados, actividades mantidas e­/ou fomentadas... O mais interessante para mim é ver que esta manutenção é activa por parte dos moradores que habitam neste centro histórico. Parece existir uma sincera humildade em toda esta operação que transparece no jeito descontraído dos seus habitantes, orgulhosos e desejosos de receber. Como nos lembram Olinda depende da economia vinda do turismo para sobreviver
Nesta cidade é como se estivesse numa vila em Portugal. Só mudam os cheiros das ruas. O cheiro a peixe frito abunda em cada esquina tal como o de roupa lavada pendurada nas janelas.
O primeiro instinto foi tentar encontrar um mapa. Decerto não seria difícil caminhar por Olinda Velha já que a sua área é relativamente e tem sido claramente inscrita pelo processo de restauração. A polícia abunda por todas as encruzilhadas e o crime tornou-se muito diminuto.
Ao sairmos do pátio da pousada somos abordados por Misael, um rapaz de 16 anos que se diz guia disposto a apresentarmo-nos Olinda. Ele pertence a uma associação que existe há bastantes anos em Olinda e que incentiva crianças de famílias carenciadas a participarem na economia para o seu sustento ao mesmo tempo que as envolvem em projectos sociais. Metade do pagamento vai para o guia e o resto para a associação que apoiará outras crianças. Lições da história e da cidade são passadas de boca em boca entre os guias que ensinam os mais novos nos passos iniciais de integração. Mirim era o rapazinho mais novo e tinha 6 anos. Estes rapazes viviam nos bairros em redor a Olinda Velha. Se o turismo oferece modos de sustento para a economia local também, e infelizmente, oferece assimetrias. E no Brasil estas assimetrias revelam-se geralmente perturbantes pela distância que as separa. Na Estrada do Bomsucesso, a caminho da Igreja de fundação da cidade, Igreja do Monte, a falta de estradas asfaltadas e saneamento já se notava. Crianças andam descalços nos caminhos de terra e barracas se tijolo amontoam-se nas íngremes encostas das colinas. Assim era a parte “de trás” de Olinda, enquanto na parte “da frente” o que fora classificado de património oferecia uma paisagem de sonho ao turista, supostamente genuíno, autêntico e acolhedor. Mas caro e inacessível aos habitantes !
Negociámos o preço com Misael que se concluiu por 25R por hora. O seu conhecimento mostrou-se impressionante: datas, factos, relatos, histórias, pessoas... Tudo parecia bem estudado. Disse-lhe que queria filmar o nosso percurso para que depois pudesse usar para um documentário acerca de Olinda. O seu entusiasmo foi total. O que me intrigou em Olinda, e contrariamente a Natal, é que não havia uma sistema contínuo no espaço publico que pudesse ser inteligível. As ruas e largo da Sé tomavam o maior protagonismo nesta dimensão cívica. O carnaval, por exemplo, começa nos “quatro cantos”, a encruzilhada entre dois eixos estruturantes nas cidade: a rua Prudente de Morais e a Ladeira da Misericórdia. Então a questão que se punha era que princípio está por detrás da estrutura física de Olinda ?
Olinda não tinha um porto imediatamente adjacente devido à braveza do mar e à pouca profundidade deste para os barcos atracarem. O porto de Olinda foi localizado por isso no istmo da baía onde hoje se encontra o centro histórico de Recife.

Á medida que Misael nos guiava por cada largo e cada igreja foi intrigante notar na forma como as vistas se articulavam simultaneamente com Recife (área do porto original), com o mar e com a planície. Olinda foi feita para observar o porto, para avistar potenciais ameaças vindas do mar e para localizar as investidas dos índios por terra. Também e, importantemente, para ser vista do mar ! Como bandeiras a anunciar os seus serviços as capelas e igrejas de Olinda foram estrategicamente localizados: nos pontos mais altos da topografia. Dali puderiam avistar e serem vistos e anunciar os presentes postos de conversão religiosa para futuros habitantes e ordem religiosas que se desejassem estabelecer. Em Olinda, existem 22 capelas e 16 Igrejas, todas construídas entre o séc. XVI e XVII. As ruas que ligam estas igrejas têm os nomes das Igrejas a que dão acesso: Rua de São Bento, Rua do Amparo, Rua do Bonfim, Travessa de São Francisco... As Igrejas e capelas serviram de catalizadores para o desenvolvimento de bairros e distritos que ainda hoje são pólos dinâmicos na cidade.
Esta estratégia lembrou-me o Plano que Sisto V estabeleceu para a expansão de Roma em 1588: um sistema de elementos monumentalizantes localizados dispersamente no território. Estes funcionariam como catalizadores para futuros bairros da cidade. Em Olinda os bairros desenvolveram-se em redor a núcleos religiosos e cívicos adaptando as formas orgânicas da topografia. As ruas ligam as Igrejas, que funcionavam como eixos estruturantes, e os blocos desenvolvem-se entre estes.

Ao longo das ruas as casas oferecem tipologias residenciais muito semelhantes às de Portugal, excepto nas cores vivas e na presença de abundante vegetação. Perguntei a Misael se ele sabia da génese de tal diferença, já que me Portugal as cores existentes são concentradas nas platibandas e em redor às janelas. Ele respondeu-me que as cores são marcos de identidade e reconhecimento do morador. Historicamente o correio era distribuído pela cor que as casas tinham e não pelos números das portas já (sistema de invenção relativamente recente).

A noite estava de chuva mas nem por isso acalmou as manifestações festivas dos habitantes de Olinda emancipação ao feriado do dia seguinte. Na praça da Sé os habitantes reuniam-se em redor a vendas de comida e bebida. Vendedores ambulantes vendiam o artesanato de Olinda: esculturas em madeira, toalhas de renda, chinelas de pele, brincos de contas... Na porta da Sé as pessoas acumulavam-se para assistir à cerimonia prestes a começar. Em frente um grupo de capoeira exibiam as suas acrobacias e cantares falados em ritmos contagiantes. O profano e o sagrado misturavam-se de uma forma que parecia mais complementar do que supostamente oposta. A noite acabou para nós no casa de samba do Tio Preto, um “club” local com respeitosa história no Carnaval de Olinda. A casa estava cheia de rapazes e raparigas que cantavam canção a canção com o mesmo fervilhar e entusiasmo. Eu tentava acompanhar mas em vão. Do terraço da casa do Tio Preto a vista para o mar era imenso. Pequeninas luzes brilhavam dos barcos que cruzavam no horizonte marítimo e das casas viam-se reflexos das televisões ainda acesas. A música invadia o vazio entre os telhados e as nuvens que se esperava desabar nas nossas cabeças a qualquer momento. Foi o momento em que decidimos ir para o hotel.