Tuesday, August 7, 2007

07.08.2007 (terça-f) – Ainda em Olinda e de partida para Salvador

Este era o último dia em Olinda; dia em que o Arquivo municipal estaria aberto. Viajar em autocarro não era a maneira mais eficiente de utilizar o pouco tempo que tínhamos para cada cidade (3 dias aprox.). Viajar para Salvador em autocarro significaria perder 12 horas no nosso plano. Por isso decidimos ir de avião que chegaria a Salvador em 2 horas.

O Arquivo Municipal foi importantíssimo na nossa investigação. Para além de imensa iconografia existente tivemos a sorte de falar com o Historiador Alexandre Dias, particularmente interessado na evolução de Pernambuco e da sua relação com a produção do Açúcar. Foi ele que nos falou pela primeira vez da relação entre a colonização portuguesa com a produção do açúcar. O objectivo da coroa era conquistar novas terras para expandir a produção de açúcar, então considerado o “ouro” branco na Europa pelos preços exorbitantes que atingiam. Alexandre era uma pessoa muito curiosa e atenta a detalhes. Com ele muita da história de Olinda e dos portugueses que navegaram nestas baías tornou-se decifrada à medida que desfolhava-mos publicações centenárias, tais como o importante “Livro que dá Razão ao Brasil” e “O Brasil que Nassau Conheceu” ambos do séc. XVII. Tinha reparado na imensa variedade de doces à disposição nos nossos pequenos almoços: cus-cus, cajequinha, bolo de milho, doce de goiaba, doce de leite, torta de milho, torta de coco, etc. Tudo muito doce e cremoso... Lembrei-me da minha mãe sempre ter-me dito que o principal pecado dos padres era a gula. Tinha sido nos conventos onde a maior parte dos nossos doces tinha sido inventados. Por isso estava a atribuir aquela variedade à possível influência das inúmeras ordens religiosas que aqui se tinham estabelecido. Mas o facto de Olinda ter sido a capital do açúcar no séc. XVI decerto possibilitou este aperfeiçoamento !

Foi Alexandre que nos fez reparar numa gravura do séc. XVII da Baía de Todos os Santos onde múltiplos engenhos de açúcar se espalha pela Baía. Em redor aos engenhos alguns Índios carregavam a cana em jeito de trabalho forçado. Nunca tinha pensado que, também os Índios, tinham participado neste empresa. Pelo que sei a sua presença não foi duradoura já que as doenças trazidas pelos Europeus causaram imensas mortes nas suas populações. Não só por este facto mas também porque os Índios tinham uma estrutura social e económica assente no sustento diário e não numa política de acumulação. A Natureza dava-lhes tudo pelo que só tinham de recolher alimentos para o dia. Interessante quando comparada com o sistema capitalista então já presente na Indústria do Açúcar em que o importante era produzir para benefícios económicas no contexto do mercados Internacional. A escravatura foi uma consequência muito precoce deste sistema económico no qual, e infelizmente, participámos activamente... Este era um mercado que movia uma comunidade internacional feita de mercadores Italianos, comerciantes Judeus, Ingleses, Holandeses, Franceses e Alemães. Isto fez-me pensar nas 36 cores de pele que o antropólogo que conhecemos em Natal referiu existirem no Brasil de hoje.

Olinda foi a capital do Açúcar antes do Rocôncavo e antes de Salvador se tornar na capital económica do Brasil. Alexandre falou-nos do quando a cidade tem sido diferentemente representada, sobretudo na quantidade de coberto vegetal no tecido urbano. Olinda é uma cidade sem muita porosidade nas suas ruas. Estas são bastante definidas e os blocos muito encerrados, Porém, é no interior destes blocos que toda a porosidade existe. Enquanto procurava-mos por hotéis tivemos oportunidade de entrar em diversas residências (agora transformadas em pousadas ou hotéis). Nestas, a presença de jardins e pátios era dominante. Os jardins funcionavam como extensões da área residencial ou simplesmente áreas de cultivo. Em gravuras antigas é possível confirmar o importante papel que estes jardins tiveram na percepção de Olinda como uma cidade muito “verde” pela forma cuidada e precisa como estes estão representados. Não só estes jasmins possibilitam áreas de cultivo e produção como também ajudam a articular a topografia no seu interior. O que foi outrora a matriz genética de Olinda hoje, ainda permanece.

Apanhámos um táxi desde de Olinda até Recife, donde iríamos apanhar o avião para Salvador. Em jeito de “short-cut” o taxista levou-nos pelos subúrbios de Recife e a paisagem de favela de Nova Olinda foi substituída por armazéns de aparelhos domésticos, oficinas de arranjo de carros, recauchutagem de pneus, venda de móveis e por Novas Igrejas, tais como Jeovás, Maná, Adventista do Sétimo dia...
O aeroporto de Recife era novo mas de dimensões humildes. O turismo de Recife tem crescido imenso sobretudo nas áreas mais a Norte da cidade onde longos pedaços de praias de águas claras existem em conjugação com complexos turísticos.
A viagem que levaria 12 horas de autocarro levou apenas 1 h de avião e, causando decerto muitos sacos de dióxido de carbono para a atmosfera. Mas como será possível evitar a demanda do tempo hoje em dia ?

Durante o voo foi possível ver como o relevo se vem acentuando desde do Nordeste até à Baía. A topografia torna-se mais acentuada e dramática. Longas linhas de montanhas aglomeram-se perto do mar e finalmente avistámos a Baía de Todos os Santos. Uma enorme entrada de mar pela terra... Há 4 séculos atrás este território era pleno em engenhos e cultivo de cana. As condições geográficas de Olinda estavam aqui amplificadas: mais rios, mais madeira, melhores condições de atracagem e melhores terreno para cultivo. Desta altura podíamos ver a entrada da Baía e revisitar a vulnerabilidade deste território contra investidas alheias. Salvador localiza-se onde o terreno se desdobra em dois níveis, ao que hoje se chama a “cidade alta” e a “cidade baixa”. Aqui definitivamente, e contrariamente a Natal, esta diferença topográfica é enorme e precipitada. A separar as “duas cidades” existe uma “parede” rochosa onde nada existe excepto vegetação, elevadores e planos inclinados !

Para Salvador apanhamos o autocarro que iria directo para o centro. Levou-nos perto de 1h, quase o tempo do voo de Recife até Salvador. Percorremos a estrada paralela ao mar; de um lado tínhamos o horizonte infinito feito de mar e céu e do outro lado muralhas feitas de grades e muros a envolverem residenciais. Tinha um ambiente bastante defensivo.

Quando chegámos ao centro de Salvador já era de noite e ainda tínhamos de encontrar sítio para dormir. Chamou-nos a atenção um hotel que se desenvolvia acima de um edifício residencial, em frente à praça da Sé. Parecia que dali poderíamos ver a Baía na sua amplitude e a cidade na sua dualidade topográfica. Infelizmente estava lotado e tivemos de procurar uma alternativa. Acabamos por ficar num hotel na mesma praça, cujos quartos eram alugados ou por hora, ou por noite ! Tinha reparado que no lobby um aviso alertava para a ilegalidade da entrada de menores acompanhados para os quartos. Nessa mesma altura uma casal de jovens aproximava-se para recolher um preservativo.

Da praça da Sé vinha um barulho imenso de gentes, de danças e carros; em todos os cantos a polícia assistia em maneira de evitar algum contratempo. Quando saímos do hotel para procurar jantar e alternativa para dormir nas noites seguintes fomos abordados por um rapaz que dizia estar com fome. Pediu-nos para lhe comprar um bolo, pois ainda não tinha comido nada. Nas costas levava uma caixa para limpar sapatos, os olhos acumulavam ramelas de há algumas horas e na boca dentes faltavam. Enquanto me dirigia para a padaria com ele disse-me que tinha uma menina e que hoje era o seu aniversário. “Em vez de me comprar comida compre-lhe leite” disse-me. Comprar-lhe-ia a comida, o leite ? O leite ele podia vender por alguns reais enquanto a comida ele poderia comer na nossa frente... Como a canção de João Gilberto diz “A gente faz o que o coração dita mas este mundo é feito de maldade e ilusão” e gelei nesse momento na minha impossibilidade e na minha suspeição, na minha indignação e cobardia, no meu desejo infinito de poder ajudar e na minha incerteza como agir. Acabámos por lhe pagar o jantar e comer connosco. Salvador, mais do que Olinda ou Natal, revelava sem perder tempo a sua realidade mais densa, mais crua e agreste.

Adjacente à Praça da Sé abria-se o Terreiro de Jesus de frente ao Colégio Jesuíta da altura da fundação da cidade. E aqui outras crianças agarravam nos nossos braços a pedir que lhe comprassem alguma coisa para comer. A escala do Terreiro, a imponência do Colégio estavam a amplificar esta situação de aparente desespero a qual me perturbou bastante... Que destino este em que se nasce pobre e tem de se permanecer assim, a viver à custa do que se pede ? Que destino este em que não se tem o básico e se vive no mais baixo nível de pobreza e ainda se tem disposição para um sorriso? Tal como nós mais turistas passavam e eram abordados. Em jeito de indiferença seguiam com os seus casacos Calvin Klein e cintos de fivelas douradas. Que contraste ! O turismo, que muitos governantes julgam ser solução para crescimentos económicos, tem um enorme efeito económico, social e cultural que pode ser extremamente nefasto para as cidades. No caso de Salvador é revelador o quanto o turismo acentua a dualidade social da cidade. As crianças que pedem amontoam-se onde turistas tiram fotografias e nas entradas das lojas de artesanato; restaurantes elegantes dispõem as suas esplanadas onde outros esperam à porta para polir sapatos....

Por ironia entramos na Igreja mais sumptuosa que já visitei até agora. Era a Igreja de S. Francisco que abria as suas portas e o ouro da exuberante talha dourada transbordava para o exterior sob a forma de uma luz amarelada. Penso que foi a igreja mais exuberante que alguma vez visitei: toda as superfícies, saliências ou detalhes eram revestido a folhas de ouro. Era de um exuberante barroco com variados motivos da flora e fauna tropical. Lá dentro as pessoas acumulavam-se para a cerimónia religiosa prestes a começar. Era terça feira à noite e a Igreja não tardou em ficar repleta de gente ! Parecia que terça feira era um dia de festa na cidade de Salvador, pois as ruas estavam cheias de gente. Seguimos um grupo até ao largo do Pelourinho pela Rua Alfredo Brito. Quando chegámos ao Largo a visão foi impressionante. A forma urbana, a materialidade, a acústica, a escala, a iluminação e a topografia conjugavam-se numa só espacialidade de características únicas. Este largo tinha uma forma triangular limitado pelo imponente (agora) Museu da cidade, pela Igreja N S do Rosário dos Pretos e por uma fileira de edifícios residenciais. As diversas ruas precipitavam-se para a cota mais baixa permitindo observar o mar de gente que se espalhava na extensão do Largo. Ali uma multidão estava acumulada ou para ouvir a banda que tocava, ou para comer ou para assistir à cerimónia religiosa da Igreja do Rosário. O seu ambiente era contagiante. Haviam características físicas que me lembravam a cidade do Porto: a profundidade espacial, a massa construída pelas encostas, os pináculos das Igrejas a elevarem-se por entre as casas, a sucessão de telhados inclinados de telha escura, a cor pardacenta das paredes...

Várias tendas improvisadas tomavam conta do Largo na sua parte mais deprimida, onde a encruzilhada de todas as ruas acontecia. Ali, diversos vendedores informais e centenas de pessoas aglomeravam-se para comprar comida e bebida. Tal como eles decidimos ter ali o nosso jantar: doces e cerveja ! Continuamos pela Ladeira do Carmo e mais uma vez pessoas aglomeravam-se em frente à Igreja de S Sacramento. Interessantemente em vez de uma praça ou largo tínhamos uma escadaria em formato de anfiteatro ! Ali as pessoas estavam cantando e em festa ! E curiosamente soava-me a cantares e ritmo angolano. Penso que foi a primeira vez que senti a proximidade destas duas culturas e me lembrei o quanto da população de Angola tinha sido escravizada aqui em Salvador. Da cidade sente-se uma imensa hibridação de culturas: na comida, na música, nas danças, na arquitectura. Em muitas lojas se vêm posters orgulhosamente fixados de artistas que vieram da Baía: Caetano Veloso, Maria Betânia, João Gilberto, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Gal Costa e a maravilhosa Rosa Passos (que conheci através de um taxista havaiano em NY)... é impressionante a energia cultural e humana que Salvador parece transbordar. Existe música em todas as esquinas, nas Igrejas, nas casas e todo centro da cidade parece em festa.

Na zona sul de toda esta agitação as ruas transbordavam com turistas vindos de muitos lados do mundo: Franceses, Ingleses, Italianos, Espanhóis, Alemães e Brasileiros (que pareciam vindos directamente de telenovelas – super aprumadinhos e a tratarem-se por “você”). O ambiente nesta zona era muito diferente do anterior pois a informalidade tinha-se transformado na indústria de fazer dinheiro com o Turismo. As ruas estavam ocupadas com mesas e cadeiras dos restaurantes que pretendiam chamar a atenção dos turistas com menus extremamente requintados e caros. Os garçons tentavam convencer quem passava da delícia e do bom preço das suas refeições. Enquanto isso expeliam as crianças que tentavam ganhar alguns trocos... Acabámos por procurar algum refúgio numa pequena rua onde alguém cantava e tocava maravilhosamente. Passamos a noite a beber cerveja fresca e a falar com Milene, uma rapariga de Salvador que vive em Berna, na Suíça com o seu noivo...