Thursday, August 9, 2007

09.08.2007 (Quinta-f) – De partida para Brasília (off track)

De acordo com a nossa calendarização tínhamos ganho 1 dia por causa das viagens de avião em vez de autocarro. Por isso decidimos usá-lo para uma visita a Brasília, um “off-track” no nosso itinerário. O voo da partida era às 19.00. Uma viagem ao Brasil colonial do séc. XVI não ficaria completa sem uma visita a Brasília, já que esta representa o desejo de um Brasil independente e rejuvenescido ! Tudo o que o período colonial representava ideologicamente, Brasília manifesta a ruptura. Ou talvez não. Arquitectonicamente Lucio Costa insurgiu-se contra o “novo-colonial” que então predominava, enquanto que tentava uma simbiose entre o tropical, o colonial e a modernidade. Mas será que existe alguma premissa no plano de Lucio Costa que se auto-referência noutras cidades do Brasil ? No texto de submissão para o concurso do plano-Piloto para Brasília Lúcio Costa dizia: “Brasília... trata-se de um ato desbravador, nos moldes da tradição colonial. O que significava tal declaração na premissa de “fazer” cidades? Alguém me falou acerca da semelhança deliberada de Lúcio Costa entre a curvatura de Copacabana com o eixo residencial de Brasília, do seu desejo em possibilitar a mesma urbanidade sentida em Copacabana...

Antes da nossa partida queria utilizar o tempo restante para visitar a cidade baixa usando os variados elevadores e planos inclinados de Salvador. Lembrei-me de Deliriuos New York de Koolhas, particularmente do capítulo “Sphere” em que associa a invenção do elevador Otis à espectacularidade que iria marcar em definitivo a paisagem urbana de Manhattan. Decerto que em Salvador coexistia a espectacularidade da própria paisagem naturalmente fortificada pela escarpa como também a espectacularidade dos seus engenhos mecânicos de transporte que em muito impressionaram os viajantes daquela época. A invenção, a miscigenação e criatividade de Salvador permanece e reside em toda a sua culturalidade que se reflecte sobretudo na sua música.
Era tempo de Check-out do hotel. Arrumámos as nossas malas, que começavam a ficar geometricamente mais pesadas, e pedimos para as manter na recepção enquanto o nosso retorno mais tarde. O senhor português falou-nos do quanto Brasil tem uma política corrupta e sem incentivos para abrir negócios, do quanto Salvador é inseguro e cruel e das saudades que tinha de Portugal. A sua mulher é brasileira e decidiram ficar na Baía para tentar a sua sorte. Havia algo de imponente no senhor: de cabelos extremamente brancos e fartos, de postura direita e robusta. Parecia que tinha um certo comportamento aristocrático que também se manifestava no trato com os seus (negros) empregados.
Salvador é assim (ainda) feita de dualismos. Não só a sua topografia é feita de extremo contraste como também a sua realidade social. Aqui tenho encontrado as situações mais extremas de pobreza e de bem estar, de requinte e de desleixo, de manutenção e de abandono. E o mais perturbante é que, como a sua topografia, estas situações co-existem abruptamente, sem espaço entre eles. Não existem elementos de transição, talvez excepto para um – o dos elevadores e planos inclinados ! Nestes toda a população se movimenta pela cidade. Os preços dos bilhetes possibilitam esta realidade e são com estes transportes mecanizados que a cidade articula os dois níveis topográficos de maneira democraticamente acessível a todos !
Começámos pelo Plano Inclinado Gonçalves. Parecia o elevador da Glória em Lisboa, pela escala e configuração do próprio elevador. Contrariamente à Glória este não era ladeado por passeios pois a inclinação do plano era muito mais abrupta. Os dois funiculares funcionavam intercaladamente para baixo e para cima em jeito de contra balanço. Enquanto um subia para a cidade alta o outro descia para a cidade baixa. O seu movimento era lento e cuidado. Dali poderíamos percorrer a secção transversal da escarpa ao mesmo tempo que a Baía nos era revelada. Chegámos à cidade baixa, na Rua Guindaste dos Padres (!). Ali as lojas abriam-se em todas as direcções, para ruas e largos, praças ou becos. O tipo de comércio e serviços era muito diferente dos da cidade Alta. Em vez de artesanato, hotéis e restaurantes viam-se lojas de roupa, electrodomésticos, sapatos, super-mercados, escritórios de advogados, contabilistas... Não se viam turistas e a cidade vivia o seu dia-a-dia sem grandes sobressaltos.
Percorremos a rua até chegarmos à Praça Cayru e ao Mercado Modelo. Dali avistámos o Elevador Lacerda, o “arranha-céus” da cidade: uma imponente estrutura de betão que assentava defrente à praça. Era muito parecido com o Elevador da Glória em Lisboa, mas em vez de metal era feito em betão.

Na Praça e no Mercado estacionavam diversas tendas a vender o mais variado artesanato: colares de sementes, brincos, esculturas de madeira, toalhas, berimbaus, cachimbos... Havia algo de genérico no tipo de produtos que ali estavam. Não senti que estava em Salvador e que poderia estar em qualquer outra cidade.
Contrariamente ao Plano Inclinado do Pilar no Elevador Lacerda estava acumulada uma multidão à espera do próximo elevador. E contrariamente, também, este era um elevador encerrado movido por elevadores Otis. Existiam cerca de 6 elevadores a subirem e descerem constantemente à cidade alta. Quando chegámos acima (cerca de 30 segundos de viagem) abatia-se um céu carregado de nuvens sobre a cidade. Tinha começado a chover e a neblina fazia da outra margem da baía uma fantasmagórica imagem. Enquanto isso, das escarpas, cintilava um verde fluorescente que se intensificava com a chuva. Este espectáculo durou 10 minutos. Depois um céu aberto acolheu a nossa ida ao Plano Inclinado do Pilar, que ligava Rua do Carmo à Rua do Pilar. Para tal teríamos de passar pelo Pelourinho e subir a ladeira do Carmo.
O tempo já estava contando contra nós e pouco tempo tivemos para visitar o Convento do Carmo, hoje instalada a primeira Pousada de Portugal fora do País. A sua reconversão parecia cuidada, de elevado requinte.
Na Rua do Carmo diversos turistas passeavam por entre lojas de artesanato. O requinte deste artesanato elevava-se para compartilhar o poder económico dos turistas que a Pousada da Carmo alojava.

Quando chegámos ao Plano Inclinado do Pilar um pequeno Largo antecipava aglomerações de pessoas vindas do Elevador. Pequeno comércio local, diversas lojas e residentes lembravam que estávamos fora dos roteiros turísticos comuns onde a cidade respirava o seu ritmo quotidiano. O plano inclinado tem uma escala “amorosa”. Parece uma miniatura dos elevadores que já vi anteriormente. Também parece o elevador da Bica em Lisboa. Só que em vez de 1 elevador tínhamos 2. Outra vez em jeito de contra balanço. A cidade está repleta da história destes planos inclinados e maioritariamente a sua localização desenvolveu-se junto aos mosteiros, pois eram o resultado de uma iniciativa comum entre as ordens religiosas e a Fazenda Real. Os padres construíam estes engenhos mecânicos, cobravam taxas para o uso destes ao mesmo tempo que providenciavam meios mecânicos para trazer bens e pessoas do Porto para a cidade alta. Os planos inclinados e elevadores foram assim elementos fundamentais na determinação de pólos de crescimento e consolidação da cidade de Salvador durante o séc. XVI e séc. XVII como se assiste no centro histórico e nos Bairros do Carmo e de S. Bento.

Estávamos em tempo de apanhar o autocarro para o aeroporto de Salvador. Arrastámos arduamente as nossas malas pesadas pelas ladeiras calcetadas em calçada tipo “cabeça de negro,” feita de pedra arredondada e escura.
Era altura de fazermos o mesmo caminho, agora de regresso, pelo mar, ao longo do recorte da Baía de Todos os Santos.

Chegámos a Brasília tarde. O voo tinha-se atrasado mais uma vez e o Hória (nosso amigo búlgaro que casou com Glória, natural de Brasília) esperava por nós.
Eles viviam na quadra 105 da Asa Norte, perto do cruzamento dos dois eixos. Atravessámos Brasília à noite e só consegui distinguir o cruzamento dos eixos, com o impressionante edifício da Rodoviária, a esplanada dos Ministérios alinhados e o praça dos 3 Poderes. O resto da paisagem urbana estava afundada na densa vegetação e na noite cerrada do planície. Em vez de dramática topografia, que nos tínhamos habituado até então, agora tínhamos um extenso “cerrado” debaixo de um imenso céu cheio de estrelas.