Saturday, August 4, 2007

04.08.2007 (sábado) –Para Olinda

Acordámos às 7 da manhã para que tivéssemos tempo de captar as imagens e sons desejados. Isto dava-nos alguma segurança para as filmagens. Varias pessoas tinham-nos avisado da imprevisível segurança de Natal: eventuais roubos sobretudo para carteiras e câmaras.
No pequeno almoço havia um bolo ao qual tinha ficava “viciada”, era bolo de milho e leite de coco com uma textura de pudim... de derramar saliva. Pensei neste como uma hibridação fabulosa entre a doçaria portuguesa com ingredientes tropicais.
Começamos a filmar na Praça Augusto Severo. Nesta praça localiza-se a estação de comboios que ligam Natal aos subúrbios, a paragem de autocarros e o Teatro Municipal. A praça estava em remodelação. Parecia quebrada em vários momentos e não oferecia a continuidade que parecia existir outrora. Imagino quando o comboio veio para Natal esta continuidade espacial com a frente de água, zona comercial e pedonal tenha sido interrompida e, desde então, não retomada. Fotografias antigas, penduradas nas paredes do Solar... ofereciam indícios da sua actividade cultural e comercial, pois era a encruzilhada entre o comercio da frente ribeirinha (Rua Chile) com a parte administrativa da Cidade Alta.

O Sr. Pedro esperava por nós à entrada do Teatro. Acredito que esperava por alguém a quem pudesse contar histórias daquele sítio passadas há 60 anos atrás... Nós fomos esse alguém. Da sua face exaltava uma irradiar que só o orgulho de quem ajuda a manter a memória deste sítio intacta tem. A câmara de vídeo não o intimidou, pelo contrário, da sua boca factos e nomes fluíam, em permanente interacção com a câmara. Parecia que estava em plena performance: “o chão veio da Bélgica, o candelabro veio da França, a mesa de Portugal... aqui vinha gente de todo o mundo, com espectáculos de todo o mundo...”
Dentro do Teatro a luz era filtrada pela galeria que circundava o pátio interior, ouvia-se a água que caía da fonte e os pássaros voavam entre esta e os beirados em redor. Parecia, tal como a imagem que o Sr. Pedro descrevia, que o tempo tinha parado assim, numa pausa entre espectáculos e que a qualquer momento, trazidos pelo comboio, uma multidão de gente invadiria o pátio. Este com uma luz perfeita e som acolhedor.
Ao mesmo tempo que nos falava das personagens do tempo da República, o Sr. Pedro abria-nos as cortinas do palco. Não havia ninguém e nada no palco, excepto um velho sofá virado para a plateia, naquele momento, nós. Se calhar assim desde há muito...
Na ladeira para a Praça 7 de Setembro arrumadores discutiam que áreas a cobrir. Esta secção da Av. Junqueira era coberta por gigantescas árvores de densa folhagem da floresta atlântica. Era como se estivéssemos a entrar num compacto corredor tropical onde raízes cresciam dos troncos, pendidas para um inexistente rio. A secção desta avenida é muito interessante. Está dividida em 2 níveis que são articulados por escada e que ligam os dois níveis nos extremos. Hoje é somente usada num dos lados já que no outro um edifício, outrora nobre, envelhece rapidamente.

Quando chegámos ao topo da Av. Junqueira a Praça 7 de Setembro desvendou-se surpreendemente vazia. Um vendedor ambulante fritava batatinhas para ninguém em redor. Perguntei-lhe se conhecia a história desta praça e ele disse-nos que não ao mesmo tempo que se desviava da câmara. Esta praça é de face com a Municipalidade e com o novo edifício cultural. Nos dias anteriores acumulavam gente à espera de autocarros que passavam para as levar para outras partes da cidade. Não parecia muito frequentada excepto para alguns eventos administrativos e/ou culturais.

Na praça André de Albuquerque, na diagonal da praça 7 de Setembro, 3 rapazes distraíam-se com baldes de água para os eu banho matinal que enchiam de uma torneira de serviço ao jardim. Eram rapazes da rua e decidimos falar com eles. Dissemos que estávamos a fazer um “documentário” da cidade do Natal e que queríamos a participação deles. Ficaram contentes e, orgulhosamente, invocavam que “a praça agora pertencia à galera”. Nas tardes que passámos em Natal era frequente vermos skaters que tomavam os bancos do jardim como rampas de salto. Em redor à praça lanchonetes exibiam gigantescas colunas que, continuamente, expeliam música. Havia gente por todo o lado que iam e vinham à medida que os autocarros passavam.
Desta praça, através das ruas que corriam perpendicularmente, a vista para o rio era lindíssima. O coberto vegetal da outra margem do rio pareciam um colchão de folhas, enquanto que o sol era reflectido na superfície da água.

Foi na praça Praça João Tiburcio que falámos com um senhor de 67 anos cuja a pele das mãos e face, queimada pelo sol e enrugada pelo sertão, antecipava os 80. Pouco percebi o que ele disse. As palavras eram codificadas por um código interno e soletradas por uma boca ausente de dentes. Falou-nos de tempo em que no redor desta praça era mato e onde os terrenos eram de graça, “era uma vida dura aquela... para fugir à fome”. Esta praça articulava o final do planalto que avistava o rio Potengi e a encosta para as margens daquele. Da complexa topografia veio a solução de terraços que eram articulados quer por escadas quer por rampas. No meio da praça localizava-se uma cisterna que acumula água vinda dos diversos terraços. As paredes de retenção, pintados a amarelo e vermelho escuro, conferiram a esta praça um intenso valor escultural onde tudo era funcional e, simultaneamente, agreste.

Saímos de Natal para Olinda às 15.00. Iríamos atravessar parte do Nordeste, cerca de 500km que durariam perto de 5h. A Infra-estrutura de transportes do Brasil, sobretudo no Nordeste, parece muito deficiente e em permanentes arranjos. Este território do Brasil é muito pobre e desprovida de uma eficiente rede de transportação. Ao longo da estrada casas de tijolo e adobe alinham-se num sistema informal e deficiente. Esgotos desaguam a céu limpo e estradas de terra batida alimentam estes desenvolvimentos informais. O Nordeste tinha uma próspera industria de cana de açúcar, ainda indústria reminiscente do período da colonização, mas muitas fábricas fecharam e o sustento de inúmeras famílias acabaram. Algumas permanecem nestas áreas outras migram para as cidades. Nunca imaginei que fosse tão pobre...

Esta migração tem vindo a acumular-se, entre outras cidades, nas redondezas de Recife e de Olinda. Aqui, numa paisagem de extensos kilómetros, uma acumulação de inacabadas barracas acumulam-se ao longo das estradas, das colinas e de qualquer espaço outrora vazio. Mensagens escritas em muros de betão lembram que “Deus é fiel” e que o “Messias está entre nós”. Decerto não por estes lados...
Extrema pobreza, violência e religião coabitam nestas áreas. E nós passamos pelo meio destas cenários como espectadores. Fico congelada entre pensamentos de culpa, resignação, revolta e impotência....
Quando chegámos à estação de autocarros era noite cerrada. O autocarro largou-nos no meio de uma rua sem luz, à frente de uma grade de metal sem entrada para uma outra estação de autocarros que nos leveraría para Olinda velha. Tivemos de percorrer o bloco para perceber-mos que a entrada do recinto estava entre vidros fumados onde era impossível distinguir se exista alguém lá dentro. Somente queríamos entrar para onde nos pudéssemos sentir mais seguros. Dos vidros fumados alguém falou connosco a quem perguntei porque estava atrás de vidros fumados: “por motivos de segurança. Quem mexe com dinheiro por aqui tem de estar atrás destes vidros para não ser reconhecido” disse. Crianças pediam troco, puxavam as malas e agarravam nas nossas mãos... Agora, em vez de espectadora, era-mos nós que estávamos numa espécie de arena como turistas. O troco que tínhamos demos, numa tentativa de lidar-mos o mais breve possível com a situação, não sabendo se o destino final seria para o jantar ou para crack...
Decidimos ir de táxi para Olinda já que a noite não estava a correr da melhor forma. Estava a chover imenso e os sacos estavam pesados. Quando chegámos a Olinda velha levamos algum tempo até encontrar um quarto. Uma convenção estava a ocorrer neste fim-de-semana e os hotéis estavam quase todos ocupados.
Não gosto de chegar à noite em cidades pois sinto-me sem orientação.